Miri Matteson era apenas uma adolescente quando teve sua vida encarcerada por 18 anos, após ser acusada de um crime que não cometeu. Pelo menos, não com a intenção sanguinária de um assassino. Criada em uma cidade pequena e costeira da Inglaterra, todos os moradores entram em estado de choque ao saber da notícia. Longos anos se passam e Miri, agora uma mulher adulta, retorna à sociedade com o suporte somente de seus pais. Tachada de psicopata, a receptividade da ex-presidiária é péssima e o passado nefasto daquela jovem insiste em rodear o presente.
Esse é o enredo de "Back to Life", nova série da BBC que ocupou o espaço originalmente de "Fleabag" no canal BBC Three. O fenômeno da antecessora abriu uma discussão sobre originalidade e versatilidade na trajetória de personagens femininos. Criada, roteirizada e interpretada pelo "fenômeno" Phoebe Waller-Brigde, "Fleabag" segue os desencantos e descobertas de uma jovem de Londres com seus amores efêmeros e sentimentos sinceros. A vida da protagonista não vai bem: a mãe morreu há três anos, o pai está namorando sua madrinha e a melhor amiga se suicidou acidentalmente. O olhar existencialista da série fomentou questões importantes para produção audiovisual contemporânea, principalmente em tempos de #metoo e maior percepção sobre o que é efetivamente empoderamento feminino. Mais do que o endeusamento da figura da mulher, percebeu-se que o maior feito era o despudoramento das coisas simples, como o sexo casual, a morte, frustrações com terceiros e decepções pessoais.
A cena televisiva do Reino Unido vem transformando o padrão da comédia moderna em feminista tragicômica. Os dramas passaram a ser explorados com mais naturalidade e jogo de cintura, sem perder o olhar crítico e o senso de pertencimento. É a combinação perfeita para a geração atual que clama por mais representatividade e histórias mais diversificadas do padrão estandardizado das décadas passadas. O insucesso nunca foi tão bem explorado como agora. E isso é um demonstrativo do amadurecimento dos criadores e o do público consumidor. Observar esse boom de "Fleabag" nos leva a refletir um pouco mais sobre o potencial de "Back to Life", comédia que destila acidez e reflexões que vão muito além do humor tradicional. A perspectiva multifacetada da protagonista oferece inocência ao texto, além de toques divertidos pelas situações estranhas que Miri experimenta ao reencontrar um mundo mais tecnológico e velhos conhecidos com narrativas que ela ainda não havia descoberto.
Também em "Back to Life", parte do seu sucesso pode ser creditada a Daisy Haggard. A atriz, intérprete de Miri, é responsável pela criação da série, além de ter roteirizado os episódios ao lado de Laura Solon. Importante: os produtores executivos Sarah Hammond, Harry Williams e Jack Williams, que ajudaram a desenvolver "Fleabag", aplicaram seu conhecimento nesta nova aposta.
Conhecida por papéis em sitcons britânicas, podemos dizer que Daisy Haggard conquistou uma personagem que poderá alavancá-la a níveis internacionais (a série será exibida nos EUA em outubro pelo canal por assinatura Showtime). Com um toque mais autêntico e íntimo, Miri flerta com as aspirações e memórias de Daisy. De maneira honesta, a criadora da série busca transformar a história de uma assassina em uma redescoberta do mundo lá fora. Miri é um bebê grande que vai aprendendo com as pequenas decepções da vida pós-prisão o que realmente aconteceu naquela noite que ela empurrou sua melhor amiga de um penhasco.
Ao sofrer rejeição de quase todos a sua volta, o gosto amargo do passado retorna e ela se questiona do porquê seria tão difícil para os outros permitirem que ela retomasse sua dignidade após cumprir os 18 anos de sentença. De acordo com Daisy, um dos pontos cruciais da série era a observação do julgamento social quando o agente do delito é a mulher. Neste sentido, a dramédia (drama + comédia) trabalha idealmente para a estrutura narrativa de Miri.
O drama vivenciado pela mulher encarcerada, que absorve o rancor e a hostilidade da vizinhança com uma culpa desnorteada. Que ao olhar para seus pais observa o real efeito dos anos na prisão: um amor incondicional, porém igualmente cabreiro. O namoradinho da adolescência já é um homem casado, com filhos, mas sem escrúpulos e infiel até o último fio de cabelo. A amiga de infância a ignorou completamente durante o período de isolamento e, hoje, tenta reconectar uma relação desgastada e misteriosamente mal resolvida. E por fim, a ficha criminal de Miri é o maior antídoto para qualquer futuro amigo ou pretendente. Lidar com esse universo de frustrações soa depressivamente divertido.
É ao longo da construção desta mulher com espírito infantil, mas histórico cavernoso que experimentamos o prazer de "Back to Life". Ressignificar o retorno de Miri para a vida externa enquanto ela busca reorganizar os pensamentos e a turbulência interna entre raiva, angústia, felicidade e contentamento.
A atuação de Daisy Haggard merece menção, pois nos transporta diretamente para este drama cômico da protagonista. Entrega um pacote de emoções, realista e engraçado, sem tornar a série um deboche ou caricatura. É o retrato de uma mulher do interior que, ao ser presa, perdeu não só sua liberdade, mas congelou seu desenvolvimento de adolescente para a vida adulta.
"Back to Life" é uma reflexão inteligente sobre evolução humana, preconceito, frustrações e expectativas. Não se propõe ser a nova Fleabag, mas entende o formato e trabalha conceitos e percepções que o mercado valoriza cada vez mais: autenticidade e originalidade. Confira um trecho de "Back to Life" disponibilizado pela BBC: