Os britânicos, para o bem ou para o mal, são os pais do que convencionamos chamar de linguagem documental. A ideia que um documentário deve ter uma tese a ser comprovada vem deles e influencia a forma como entendemos o gênero até hoje. Logo, não é de se estranhar que "Up", um projeto que mais parece um estudo sociológico longitudinal, venha de lá. A premissa (ou "tese") é simples: acompanhar um grupo de crianças de 7 anos* de diferentes origens e classes sociais e como essas variáveis iniciais influenciam os destinos de suas vidas. E repetir o registro a cada sete anos. E assim tem sido feito. Desde 1964 !
O Formato é considerado um dos precurssores do que chamamos "reality show"no Reino Unido (em 1974 estrearia nos EUA 'An American Family', outro marco do gênero). Em tempos em que, graças a tecnologia, podemos acompanhar semanalmente na TV ou diariamente nas redes sociais a vida de '"personalidades da mídia" como as Kardashians (que nos brindam com champagne, sex tapes e tretas há 12 anos), vale lembrar que nem sempre foi assim. Kim, Kylie e Khloé têm muito a agradecer aos catorze participantes desta experiência sócio-midiática dirigida pelo (então) jovem Michael Apted.
Foram dez meninos (Andrew, Charles, John, Tony, Paul, Symon, Nick, Peter, Neil e Bruce ) e apenas quatro meninas (Suzy, Jackie, Lynn e Sue) selecionados para o especial. A principio não havia expectativa de outras temporadas, então não foram feitos contratos, o que dificultou ainda mais a produção da série. Assista o primeiro episódio na íntegra:
"7 Up" - 1964
Ao longo dos anos, o mundano e o extraordinário se cruzaram diversas vezes. Crianças dadas como "certas" na vida, não encontraram o futuro sonhado e/ou planejado, enquanto outras se consideram abençoadas pelas dificuldades que encontraram no caminho. Apenas um dos participantes, Charles, abandonou o projeto aos 21 anos. E, ironicamente, também se tornou documentarista.
Como pano de fundo, vemos a diferença que sete anos podem fazer na vida de um diretor e de uma nação. A cada temporada nos deparamos com um novo Reino Unido, com novas esperanças e problemas e com as mudanças no foco das perguntas para os entrevistados. De mero registro etnográfico nos anos 60, passamos para o viés claramente ideológico dos anos 70 e 80, pelo vazio existencial neoliberalista dos anos 90, até chegar na "sociedade do espetáculo" do início do século XXI.
Apted recebeu diversas críticas da mídia e dos próprios personagens ao longo dos anos sobre seu estilo de direção e escolhas de edição. Em um dos relatos em "56 Up", John contemporiza com seu interlocutor afirmando que ali está o registro de um homem de 56 anos, porém não dele. O que mostra as dificuldades inerentes do meio em capturar, registrar e contar a jornada única de cada ser humano do nosso planeta.
O Formato foi refeito em outros países como EUA e Japão, também com sucesso. Talvez pelo caráter comercial da nossa TV, não há experiência similares no Brasil ("20 e poucos anos" da MTV talvez seja o mais próximo disso, com um especial anos após a exibição mostrando o destino de seus personagens).
Este mês estreou a nona temporada, "63 Up", mas o canal ITV ainda não disponibilizou o material para fora do Reino Unido. Como curiosidade seguem os trailers das ultimas 3 temporadas:
"56 Up" - 2012
"49 Up" - 2005
"42 Up" - 1998
Hoje é possível ser protagonista, editor e diretor do reality show da sua própria vida. A previsão de Andy Warhol se concretizou e todos temos nossos quinze (ou mais) minutos de fama. Porém, aquilo que os britânicos consideravam primordial se perdeu: o "porquê". Daí a importância de 'Up'.
A décima temporada já está prevista para 2026, mas apenas com sorte veremos os destinos dos futuros septagenários, pois Apted estará com noventa e nove anos. É torcer para um final feliz. Quem viver, verá (literalmente).
Abraços e até a próxima!
* Por que 7 anos? Segundo o diretor, a idade é baseada no lema jesuíta que diz que o caráter de uma pessoa pode ser transformado apenas até os sete anos de idade (o que tentaram fazer com nossos índios, sem grande sucesso).
Ah, já ia me esquecendo de algo muito importante e relevante para nossa geração: você sabe que algo realmente teve impacto cultural quando vira paródia em 'Os Simpsons', então...