Dia 22 de setembro de 2024, fez 20 anos que "Lost" estreou para um público que não conseguiu desgrudar da TV durante seis misteriosas temporadas. Olhando em retrospectiva, não dá para negar que a série teve altos e baixos, em uma época onde uma temporada tinha 23 episódios e o hiato entre elas soava como uma verdadeira eternidade. Mas também não podemos fechar os olhos para o salto de qualidade em uma narrativa multiplataforma, que fez sua enorme audiência se relacionar com um conteúdo que superava os 45 minutos semanais de história - eu diria que essa sede por um Universo extendido ganhou outras proporções depois de "Lost". Embora controverso, o final da série reverberou pelos quatro cantos do planeta e seu (pelo menos para mim) emocionante final é motivo de discussões até hoje - principalmente entre aqueles que não entenderam a relação entre as linhas temporais dos personagens e acham, até hoje, que eles estavam mortos o tempo todo!!!!
Pois bem, Michael Eisner era o CEO da Disney na época, quando a ABC (uma das empresas do Grupo) passava por uma crise terrível, principalmente pela desmoralizante perda do programa “The Apprendice” para a NBC. Sucesso naquele momento, "O Aprendiz", apresentado pelo ex-presidente dos EUA, Donald Trump, havia conquistado mais de 20 milhões de espectadores, salvando a programação da NBC naquela temporada e jogando a ABC para o incômodo quarto lugar no ranking das emissoras de TV aberta.
Lloyde Braun e Susan Lyne, executivos responsáveis pelo desenvolvimento de projetos para 2004-2005 da ABC, sofriam uma forte pressão por uma temporada de sucesso, capaz de reerguer a emissora, que alguns anos antes era a líder de audiência no EUA. Foi então que em um encontro corporativo onde se discutiu sobre novos projetos, Braun apresentou uma idéia que chamou irresponsavelmente de “Lost”. O programa foi descrito por ele como um encontro do longa-metragem “Náufrago” com o Reality “Survivor”. Na época Braun explicou exatamente assim: “(…) não seria um cara sozinho com uma bola numa ilha deserta, mas sim um grupo de pessoas que agora têm de pensar: "Como é que nós fazemos para sair desta Ilha?”
Apenas algumas semanas mais tarde, Braun recebeu um telefonema de Aaron Spelling (produtor de Beverly Hills 90210 - o nosso "Barrados no Baile") dizendo que queria produzir “Lost” para a ABC. Então Braun solicitou um roteiro para o piloto. Era dezembro quando o roteiro chegou e Braum detestou: “Estava horrível, e o segundo tratamento era ainda pior”. Prontamente negado esse roteiro, o executivo resolveu procurar um promissor produtor chamado JJ Abrams - criador de séries como “Felicity” e “Alias”. Após uma breve reunião, Abrams disse que pensaria a respeito no final de semana. Para ajudá-lo, ele foi apresentado a um jovem roteirista chamado Damon Lindeloff. Os dois se encontraram e na reunião seguinte apareceram, entusiasmados, com uma nova idéia: agora, além de um grupo de pessoas sobreviventes de um acidente de avião numa Ilha, haveria algo mais - uma presença sinistra e invisível. O grande problema é que já era fevereiro e o período de “testes” para os pilotos que ganhariam uma temporada completa estava muito próximo, não haveria tempo para escrever toda a temporada, sendo assim, Braun e Lyne teriam que aprovar o projeto apenas com o roteiro de um piloto.
Embora eles tivessem essa autonomia, Lyne era contra aprovar qualquer coisa nessas circunstâncias, ainda mais um projeto como “Lost”, porém, mesmo assim, ela apoiou Braun - já que estava completamente dedicada no desenvolvimento de um outro seriado que acreditava poder preencher a lacuna deixada com fim de “Sex and the City”, seu nome: “Desperate Housewives”.
Bom, quando Braun e Lyne se encontraram com Bob Iger, na época presidente da ABC, para discutir os projetos que seriam produzidos, ele foi bem taxativo com relação ao que leu sobre “Lost”: “É uma perda de tempo. Pode funcionar como uma minissérie, mas não como série”. O problema principal era que “Lost” esbarrava na péssima experiência de “Twin Peaks” e como David Lynch, que nunca soube quem matou Laura Palmer, transformou sua história em uma enorme confusão, completamente incoerente. Sendo assim, o projeto dos criadores de “Lost” pareceu muito superficial para Iger, pois ou eles não sabiam ou não queriam contar o que era a misteriosa presença na Ilha.
A posição de Iger foi bem clara e um convite para que Braun descartasse o projeto, mas em vez disso, Braun resolveu assumir o risco: pediu para Abrams que terminasse o roteiro do piloto o mais rápido possível, começasse a escalar o elenco e montasse uma equipe de pré-produção para começar coordená-la imediatamente - Braun foi um louco!
(Uma informação importante: Em uma conversa entre Michael Eisner e Bob Iger dias depois dessa reunião, Eisner também foi contra o projeto: “Isso nunca vai funcionar. Parece mais um dos projetos malucos de Abrams!”)
Quando, finalmente, o roteiro do piloto ficou pronto, Braun e Lyne acharam brilhante, mas o custo do episódio de duas horas era de impensáveis 12 milhões de dólares - um absurdo naquela época, ainda mais se tratando de TV aberta. Braun sabia que não contaria com o apoio de Iger e muito menos de Einer, ainda mais com um orçamento desses, mas mesmo assim deu o sinal verde para a produção: “Se estivermos trabalhando em bom ritmo, eles não irão nos parar. E se o seriado não funcionar, no mínimo, teremos um bom filme feito para TV”.
Braun sabia que acabara de dar uma ótima razão para ser demitido, afinal havia aprovado um projeto contra a vontade do seu chefe, com um piloto de 12 milhões e sem ao menos ter a primeira temporada inteira escrita. Infelizmente, sua demissão acabou se confirmando cerca de um mês depois, mais precisamente na última semana de março de 2004, quando ele retornava do Havaí onde JJ Abrams filmava o piloto de “Lost”.
No final de setembro daquele ano, um anúncio de página inteira no New York Times confirmava o enorme sucesso que foi a estréia de “Lost”- eram resenhas elogiosas e que citavam os excelentes índices de audiência do piloto. Enfim a ABC tinha um grande sucesso em suas mãos, mas não para todos: “Esse anúncio foi um verdadeiro desperdício de 75 ou 100 mil dólares”, comentou o "todo poderoso" Eisner para um jornalista. “É tudo uma questão de ego, de agradar a chamada elite intelectual de NY. Esse anúncio não vai conseguir nenhum espectador a mais. Talvez se tivesse saído no US Today… Lost é péssimo! O piloto tem duas horas; foi dividido em dois episódios de uma hora. Então a série cai no precipício. Já não existe mais acidentes de avião! Quem se preocupa com aquelas pessoas numa ilha deserta?”
*Vale ressaltar que esse fato ocorreu menos de um mês depois que Michael Eisner entregou sua carta de demissão depois de 20 anos como principal executivo da Disney. Foi seu sucessor, Bob Iger, que mesmo tendo sido contra a produção, acabou colhendo os frutos do enorme sucesso que se tornou “Lost”.
Hoje é fácil responder a pergunta que Eisner fez em 2004: “Quem se preocupa com aquelas pessoas numa ilha deserta?”. Seis temporadas se passaram, um planejamento de marketing quase perfeito, roteiros excelentes (e complexos), além de uma produção impecável para época! Certamente a resposta é: "milhões de pessoas, em todo o mundo!" O próprio ex-presidente dos EUA, Barack Obama, usava o twitter para discutir e comentar sobre a série no final de cada episódio! Claro que nem o próprio Lloyd Braum poderia imaginar que sua simples idéia fosse se transformar no fenômeno que foi “Lost”, mas certamente ele estava convicto que a decisão certa era a de produzir aquele piloto criado e desenvolvido pelos jovens, porém talentosos, JJ Abrams, Damon Lindeloff e Carlton Cuse - mesmo que isso custasse sua cabeça! Confira o trailer oficial da série, lançado na época pela ABC (por isso sua qualidade não é das melhores):
É preciso dizer que a colocação que Bob Iger fez na época em que lhe apresentaram o roteiro de "Lost", obviamente, tinha uma certa coerência e justificava sua preocupação, pois seus criadores realmente não sabiam ou não queriam dizer o que era a misteriosa presença na Ilha - valeria a pena apostar em algo tão caro e sem garantia nenhuma? O tempo provou que sim, eles sabiam o que estavam fazendo, eles tinham um final e tudo faria sentido se o controle fosse mantido com eles durante toda a jornada da série, porém com o afastamento de Abrams, muita coisa foi modificada e nunca saberemos se tudo o que foi pensado, foi realmente produzido. Existem afirmações que o arco narrativo já estiva definido desde o final da terceira temporada, mas eu tenho algumas dúvidas, principalmente pelo que assistimos em "Fringe" algum tempo depois (será que J.J. não aproveitou do conceito que tinha em mente para "Lost" e usou em "Fringe"?). Talvez a forma como tudo foi se desenrolando até aquele final, tenha gerado algum ruído narrativo, até pela dinâmica de programação da época! Agora, não se pode, em hipótese alguma, diminuir o valor que a jornada daqueles personagens representou para o desenvolvimento do entretenimento como vemos hoje. "Lost" foi muito inovador na sua forma, no seu conteúdo e na maneira como chegou às telas - mérito de Braum que acreditou no talento de três jovens roteiristas e em uma idéia que parecia loucura desde o início, mas que se provou ter sido um dos maiores acertos da TV americana!
Ah, e eles não estavam mortos o tempo todo, ok?
* Uma última curiosidade: Embora Braun tenha tido muitos problemas para receber os créditos por "Lost", sua voz continuou ecoando no ouvido de milhões de pessoas toda semana e acabou virando uma marca registrada do sucesso da série. Era dele a voz do "Previously on Lost"!