Para quem trabalhava no mercado audiovisual antes da era do streaming, não existia exercício melhor do que analisar um episódio-piloto para tentar adivinhar se o projeto teria algum futuro na grade de programação. Naturalmente não era um exercício fácil, já que muitos fatores precisavam ser levados em consideração antes de um veredicto, porém, não raramente, o tiro era certeiro: "essa história não se sustenta em mais de X episódios ou por Y temporadas". No caso de minisséries o processo era um pouco diferente já que o desenvolvimento de um projeto praticamente obrigava a produção do pacote fechado e mesmo assim, depois de alguns episódios, já considerávamos como uma espécie de "teste" para um possível desmembramento em uma série regular ou até um spin-off.
Me lembro de um episódio, quando os americanos já se preparavam para uma ressaca pós-Lost, que simplesmente fundiu minha cabeça e talvez ao lado do próprio "Lost" e de "Heroes" tenha representado um dos melhores pilotos (do gênero) da história da TV aberta nos EUA. Não preciso dizer que a série foi cancelada rapidamente, mas aquele episódio foi praticamente perfeito para os padrões da época. Estou falando de "FlashFoward" (que aqui no Brasil ganhou o título de "Linha do Tempo") - nela, um misterioso evento global faz com que "todas" as pessoas experimentem, simultaneamente e por exatos dois minutos e dezessete segundos, suas vidas, seis meses no futuro. Quando tudo volta ao normal, muitos acidentes envolvendo veículos, aviões, e quaisquer outros meios controlados por humanos representaram o retrato do caos que esse evento causou naquele dia. Todos os que sobreviveram se perguntam se o que viram é o que realmente vai acontecer e muitos não gostam do que viram. Um agente do FBI chamado Mark Benford tenta descobrir o quê aconteceu, e por quê. Ao lado de sua equipe, ele cria um banco de dados com os flash forwards de pessoas de todas as partes do mundo. Além de várias visões catastróficas, as pessoas viram a si mesmas se entregando para vícios antigos, em novos relacionamentos, etc - e alguns não viram absolutamente nada. Confira o trailer (em inglês):
"FlashFoward" foi originalmente desenvolvido para ser uma minissérie do "canal pago" HBO - seria um adaptação de uns 8 ou 10 episódios do livro homônimo de Robert J. Sawyer. Acontece que a HBO recusou o projeto indicando que seu potencial agradaria uma emissora aberta. A ABC e a FOX disputaram o projeto, devido ao envolvimento de um dos produtores, Brannon Braga, na série 24 Horas, da FOX. Braga acabou se retirando do projeto para diminuir a tensão entre as duas emissoras, abrindo caminho para ABC (a mesma de "Lost") produzir a série que passaria a ser liderada por David S. Goyer (A Guerra do Amanhã).
Pois bem, embora os tempos sejam outros, a história por trás de "Nove Desconhecidos" do HULU, e que aqui no Brasil ganhou distribuição pela Prime Vídeo, é parecida. Depois do enorme sucesso da HBO, “Big Little Lies” (2017-2019), que nasceu como uma minissérie e acabou ganhando uma segunda temporada (no mesmo nível, diga-se de passagem) começou uma corrida do ouro em torno das demais obras da escritora australiana Liane Moriarty. David E. Kelley, nome forte em projetos que adaptam ótimas obras da literatura moderna em excelentes séries (muitas para HBO, incluindo “The Undoing” em parceria com a Nicole Kidman), apresentou o projeto para a HBO que precisou declinar por alguns motivos (não especificados, porém eu arriscaria dizer que "White Lotus" seja o principal), mas um comentário na época pode colocar uma pulga atrás da orelha de quem está conhecendo a minissérie agora: "a história tem potencial para mais episódios do que os 8 previstos".
Para quem não sabe, a série acompanha nove personagens que vão se desligar do mundo durante 10 dias em um spa de luxo. O lugar tem regras espartanas: celulares, cigarros, guloseimas, computadores, tudo tem que ficar do lado de fora. A ideia é que, a partir da imersão, a pessoa “renasça” e assim a promessa de que "ninguém sai como entrou" se concretize. Veja o trailer:
Nós assistimos os primeiros três episódios disponibilizados pela Amazon para o lançamento de "Nove Desconhecidos" e, como em "FlashFoward", mesmo interessante, é impossível cravar que será um sucesso embora tenha um enorme potencial. A minissérie se aproveita do que existe de melhor em "White Lotus" e em "Tempo" de M. Night Shyamalan: o cenário paradisíaco e o conflito entre personagens (aparentemente) buscando algo (para muitos uma redenção). As similaridades param por aí, mas estrategicamente a HBO foi certeira em não confundir sua audiência com os dois projetos - até porque "White Lotus" já teve uma segunda temporada confirmada e preencheu essa lacuna com louvor.
Seguindo o mesmo nível de produção usual de Kelley, "Nove Desconhecidos" me prendeu, mas assumo que precisei embarcar na proposta da história, aceitando uma certa suspensão da realidade, já que ela é recheada de esteriótipos na narrativa e no conceito visual imposto pelo diretor Jonathan Levine - e aqui cabe um comentário: embora competente, Levine está anos luz de Jean-Marc Vallée (e até de Andrea Arnold) que dirigiram “Big Little Lies” e isso só distancia o que é HBO do que é HULU.
Os nove desconhecidos do título são figuras absolutamente díspares. Francis (Melissa McCarthy) é uma escritora best-seller em crise na vida e no trabalho, Carmel Schneider (Regina Hall) parece só pensar nos filhos e busca melhorar sua autoestima, uma influencer digital (Samara Weaving) está em crise no casamento já que seu marido (Melvin Gregg) não tem a menor paciência para se relacionar com ela, e por aí vai. Repare: são traços que naturalmente geram conflitos internos e que facilmente extrapolam para um embate natural com outros personagens de personalidades ou posturas antagônicas. O fato é que conflito não vai faltar - e aí dá para entender o comentário "a história tem potencial para mais episódios do que os 8 previstos". Basta trocar os hóspedes - será que isso vai acontecer com "White Lotus"?
É claro que ainda é muito cedo para dizer que teremos algo além, afinal não sabemos muito da trama, mas me parece natural que o sucesso da minissérie gere um outro produto (no caso uma continuação). Até aqui, fica fácil perceber que "Nove Desconhecidos" pode ser surpreendente - o que me deixa inseguro é a forma como a história extrapola no drama e no mistério sem fim. Normalmente quando isso acontece, vamos elevando nossa expectativa, esperando um ápice sensacional até que, de repente, já estamos decepcionados com algo que é bom, mas que não alcançou o que nos provocaram... Shyamalan que o diga.
Assim que assistirmos os 8 episódios voltamos com uma análise completa.