"Sangue Negro" é um grande clássico moderno, lançado em 2007 e indicado em mais de 50 premiações: como Oscar, Globo de Ouro, BAFTA, entre outros. O filme é estrelado pelo magnífico Daniel Day-Lewis, que nos presenteou com aquela que é, para mim, a melhor atuação desse século e que lhe rendeu TODAS AS PREMIAÇÕES de melhor ator naquele ano. A sua interpretação é uma peça importante na relação com a trilha sonora do filme, mas sobre isso explicarei um pouco à frente.
Primeiro, vamos falar sobre a trilha sonora:
Antes de entrarmos sobre a sonoridade e faixas da trilha sonora em si, é importante contextualizarmos sobre quem está por trás da sua criação. A trilha sonora do filme foi criada por Jonny Greenwood, guitarrista e multi-instrumentista do Radiohead e apaixonado por música erudita. Depois de ouvir a tocante trilha sonora do filme "Bodysong", o diretor Paul Thomas Anderson ficou admirado em como Greenwood conseguiu produzir algo tão diferente para o filme - com uma base clássica, mas também com um toque de experimentalismo moderno. Anderson, então, convidou Jonny Greenwood para cuidar da trilha de "Sangue Negro", mas o compositor teve dúvidas quanto ao tema do filme, visto que trataria de um assunto polêmico, com questões políticas e religiosas. Anderson explicou em detalhes o roteiro e a conotação crítica do filme e, só após isso, Greenwood decidiu participar do projeto, compondo uma trilha sonora de mais de 02 horas. A parceria entre os dois deu tão certa que posteriormente eles realizaram outros dois projetos juntos, o filme "Inherent Vice" (2014) e "Phantom Thread" (2017) - este último rendeu a Jonny Greenwood sua primeira indicação ao Oscar e contou com Daniel Day-Lewis novamente como protagonista.
"Sangue Negro" é um filme claustrofóbico, com uma temática sombria e um roteiro visceral, que joga na nossa cara a ganância, a soberba e a cobiça desenfreada escondida dentro das pessoas, levando-as a se perderem na linha tênue entre o "certo e o errado" e a caírem numa insanidade sem volta. O filme provoca uma sensação nauseante na relação entre os personagens principais, que é amplificada pela sua trilha que produz uma sonoridade fechada e com andamentos pouco convencionais, com notas esticadas demasiadamente ou com muitas quebradas repentinas - o que ajuda a dar um ar ainda mais maluco ao filme.
É importante notar que as influências clássicas de Greenwood são de artistas que sempre exploraram de forma experimental os "ditos" instrumentos clássicos como: violinos, violoncelos, piano e "sopro" (flauta, oboé, etc). Um desses compositores é Krzysztof Penderecki, que tem uma sonoridade obscura, num tom etéreo e aterrorizante, com violinos ressonantes que abusam de vibratos e que sobem e descem de forma prolongada cada nota. Podemos ouvir a influência de Penderecki em "Prospectors Arrive" e "Henry Plainview", faixas que fazem parte da trilha sonora do filme. Essas músicas mais pesadas combinam muito bem com as cenas escuras e em ambientes fechados que estão presentes em grande parte do filme e que remetem o seu teor claustrofóbico, incômodo e cru. Outro músico que serve de inspiração para Greenwood é Oliver Messiaen, que traz um som um pouco diferente de Penderecki - algo mais "esquisito" e incomum, onde os instrumentos são agitados e contam com várias quebradas interruptas no andamento das músicas. Podemos sentir a influência de Messiaen nas músicas "Future Markets" e "Proven Lands".
A trilha sonora se alia de forma perfeita com a atmosfera esquizofrênica do filme, onde o ponto central está mais na relação entre os dois personagens principais do que na história em si. As músicas atuam como uma extensão dos sentimentos desses personagens, nos ajudando a compreender melhor a loucura entre eles. A forma como Daniel Day-Lewis e Paul Dano interagem no filme é de dar calafrios - chega a ser assustador a veracidade que colocam nas suas cenas. A passagem em que Daniel Plainview (Daniel Day-Lewis) dá uma "lição" em Eli Sunday (Paul Dano), humilhando e espancando o personagem, é só mais um dos vários momentos tensos da relação perturbadora entre os dois - e são nesses momentos que as músicas entram para deixar tudo mais insano. Nessa cena, por exemplo, temos um contraste sonoro que dá o exato tom que os dois personagens vivem naquele instante, com a música soando suave e num ritmo apressado ao mesmo tempo. Repare:
Se "Sangue Negro" rodar no mudo, você já será impactado e conseguirá absorver a loucura que o filme transmite por visualizar as expressões e as interações dos personagens principais. Se você ouvir a trilha sonora separada, também conseguirá sentir muita emoção e absorver a loucura da obra, devido aos contrastes sonoros, ritmos bizarros e quebradas repentinas que as músicas produzem - como a maciez de "Open Spaces" ou a forma sufocante em que os instrumentos soam em "There Will Be Blood". Contudo, se você assistir o filme inteiro num bom sistema de som, toda essa loucura será multiplicada e, então, você sentirá a emoção inquietante e incômoda que essa obra incrível provoca.
Ouça abaixo a playlist que preparei com alguns destaques da trilha sonora de "Sangue Negro" e sinta a insanidade na forma de som: